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Como a falta de repertório cria profissionais mancos

Vivemos em uma Era de extremos quando o assunto é conhecimento. Se por um lado temos ao nosso dispor uma quantidade de informações como nunca antes existiu antes, por outro, cada vez mais as pessoas restringem seu saber a poucos cliques ou a fontes de conhecimento parcas. As consequências são as mais variadas, tanto na esfera pessoal quanto no âmbito profissional.

No que tange a carreira, é cada vez mais comum encontrar profissionais com repertório geral reduzido, o que limita a carreira destas pessoas e ao mesmo tempo deixa empresas fragilizadas. Quando me refiro a repertório pequeno, estou essencialmente falando sobre conhecimento geral sobre artes, economia, política, além, é claro, sobre conhecimentos específicos sobre a área de atuação de cada profissional. Também poderíamos incluir nessa conta o repertório emocional, que consiste na habilidade que cada pessoa possui para lidar com diferentes situações da vida.

Agora que já delineei o que pretendo dizer com repertório reduzido dos profissionais da atualidade, podemos avançar um pouco. Pessoas com repertório limitado possuem dificuldade em lidar com situações corriqueiras do dia a dia e também não conseguem sair facilmente de situações que não viveram antes. Tendem apresentar um desenvolvimento na carreira mais lento e, em alguns casos, colocam a empresa em que trabalham em situações de ameaça. Basta imaginar um profissional com pouco conhecimento sobre o que ocorre no Oriente Médio opinando sobre a situação da Palestina com um cliente árabe ou judeu.

Por que o repertório dos profissionais reduziu tanto?

 Não pretendo esgotar a discussão sobre a sensível redução do conhecimento geral das pessoas no contexto profissional, até porque existem especialistas que poderiam aprofundar essa discussão com muito mais propriedade. No entanto, tenho observado algumas situações que acredito que podem limitar claramente o desenvolvimento profissional e pessoal de muita gente. Eis abaixo meus palpites:

1 – Lemos muitas manchetes e poucas notícias

 Atualmente temos ao nosso dispor uma série de portais de notícias e fontes de informação na web. Apesar da quantidade, é cada vez mais comum termos uma visão muito genérica e cada vez mais superficial do que acontece ao nosso redor. Pessoas passam o olho nas manchetes, mas poucos leem uma notícia até o fim. Conteúdos impressos, que tendem a ser mais densos, é menos comum ainda na rotina dos leitores. Tudo isso reduz o entendimento de mundo dos indivíduos.

 2 – Preferimos séries a filmes

 Antigamente quem gostava de filmes ia no cinema ou ainda assistia as produções cinematográficas pela TV. Com a popularização das séries, os expectadores cada vez assistem menos filmes em detrimento dos seriados. A consequência é que um seriado retém uma pessoa ao redor de uma história durante anos, diferente de um filme, em que cada produção possui um diretor diferente, com personagens distintos e histórias completamente singulares. Quando trocamos filmes por séries perdemos repertório.

 3 – A Era do On Demand não nos expõe ao novo

 Hoje temos ao nosso dispor uma série de conteúdos sob demanda. Podemos ver a novela, o jogo de futebol, o filme ou ainda música no momento que nos for mais conveniente. Praticidade à parte, quando a gente consome conteúdo sob demanda, adotamos uma lógica pragmática, que nos restringe a possibilidades de conhecer o novo. Veja o ato de ouvir música: quando tínhamos como única opção conhecer novas canções pelo rádio, escutávamos uma variedade de melodias, sendo obras que gostávamos ou não. Esse processo enriquecia nosso repertório musical e cultural. Hoje, com o Spotify, escutamos apenas músicas com estilos semelhantes ao que já gostamos. Não conseguimos avançar muito além do que já temos.

 4 – Vivemos na bolha dos algoritmos

 Algoritmo é o termo que mudou nossa vida nos últimos dez anos e vai impactar cada vez mais nossa rotina. São eles que recomendam que série assistir no Netflix, que grupo participar no LinkedIn, qual banda conhecer no Spotify ou ainda o que ler no Facebook. Esse mundo perfeitamente personalizado e sob medida produzido pelos algoritmos nos traz conforto e eficiência, mas nos coloca dentro de uma bolha. Vivemos em uma espécie de Coréia do Norte digital, em que as informações fluem sob estrito controle e são reguladas. Não temos espaço para o novo e nossa tolerância a opiniões divergentes é cada vez mais reduzida. Com isso nosso repertório mingua.

 5 – A ascensão na carreira é mais rápida e não linear

 Durante décadas crescer na carreira exigia trabalho duro, estudo e muito tempo de casa para alcançar posições maiores dentro da empresa. Quanto mais grisalho o cabelo, maior o cargo da pessoa. O mundo mudou e as coisas acontecem de forma menos linear e muito mais veloz. Com isso temos profissionais jovens assumindo cada vez mais cargos de liderança, o que é justo. Por outro lado, é inegável que parte da bagagem de um indivíduo é conquistada com a vida, no dia a dia. Quanto mais velha é uma pessoa, mais chance ela possui de ganhar maturidade (isso não é uma regra, mas uma vantagem!). Desta forma, é comum vermos profissionais com menos prática diante de situações que ainda não possuem maturidade suficiente para lidar.

6 – Nossa educação é cada vez mais utilitarista

 O salto que a humanidade deu no conhecimento nos últimos 50 anos é gigantesco. Neil Armstrong pisou na Lua com apoio de um computador de apenas de 2 KB de RAM. Diante da evolução do saber e da tecnologia, é cada vez mais comum termos uma educação voltada para domínios específicos e utilitaristas, ou seja, perguntamos sempre: “preciso aprender isso para quê? “. Essa preocupação incessante com a aplicabilidade do conhecimento de jovens alunos produz pessoas sem grande conhecimento de base. Nota-se cada vez mais profissionais sem conhecimento de literatura, filosofia e princípios universais da vida, que continuam regendo as relações humanas.

 7 – Restringimos cada vez mais o contato pessoal

 O mundo evolui para um contexto social mais tecnológico e conectado. Estamos diante de um paradoxo: conseguimos nos aproximar de mais pessoas com a tecnologia, mas também nos afastamos delas. Hoje decidimos se vale a pena sair com uma pessoa ou não por aplicativo. Não precisamos do contato pessoal para realizar essa avaliação. Outra situação interessante: o ensino à distância (EAD) permitiu a democratização da educação. Por outro lado, ao fazer uma faculdade online perdemos grande parte das interações humanas que um curso de graduação promove ao longe de alguns anos. Isso mais uma vez reduz repertório.

A redução de repertório parece ser uma consequência das profundas transformações tecnológicas que vivemos nos dias de hoje. Isso não significa que devemos eleger a evolução do mundo como a grande vilã do momento. É comum em períodos de grandes mudanças termos estes desequilíbrios. O que não podemos é aceitar o baixo padrão de entendimento do mundo e das pessoas como algo normal. Em uma economia em que cada vez mais máquinas irão ocupar a posição de pessoas, só vai sobreviver quem possuir empatia, ou seja, a habilidade para se colocar no lugar do outro. E praticar empatia requer muito repertório.